Sunday, January 20, 2008

IMERECIMENTO

p/ o Poppe

Amizade é metal precioso, é luxo
eterno, enquanto nós, andarilhos
de nós mesmos, ensaiamos
um passo adiante...
Eia, maltrapilhos, mendigando
a moeda tempo, insatisfeitos
(menos sobra quanto mais se apura)
Bem lá no fundo dessa
ridícula finitude,
seres sós, metal vulgar,
definitivamente, amigo, ah!
não fomos feitos para a amizade

Friday, January 18, 2008

O AVIÃO

Nem ronco nem nada
no silêncio altíssimo da noite
O avião, como um ovni, cruza o caminho
congestionado de estrelas
rumo a Pequim

O que vem lá
que se afasta de mim?
O avião, talvez,
num adensamento de luz
e sombra, que na distância se perde
(desaparece aqui, surge acolá)
envolto na escuridão
Sim, o avião, e mais nada
e nada sei de
Pequim

Quem vem lá
desconhecido de mim?
O cavalheiro que dorme, a bolsa
de mão nas algemas,
a moça que sonha outro sonho
alheio às estrelas,
a senhora que não quer
nem pouso, nem decolagem
(mais chegadas e partidas
por saber e olvidar)
Todos e nenhum
sem saber de
Pequim

O avião, contrário
à direção de mim, até sumir
Inútil buscar, com esses
pés de Mercúrio,
vestígios do que enfim se perdeu,
suspenso do chão: aqui ou
lá, ó deus dos ladrões,
o mesmo vôo ermo de passageiros,
a mesma ambígua memória
de ovnis e estrelas e,
não sei por que,
também de
Pequim

Thursday, January 17, 2008

CASA PATERNA

Itaperuna é longe
Mais longe ainda imaginar
a cidade sem a esquina
e as histórias do sobrado antigo

Do acordar ao deitar-se,
uma história diurna de segredos
e medos; outra intemporal
e noturna, entre o adormecer e o milagre
de se pôr uma vez mais de pé,
rompendo a escuridão
Histórias tão diferentes, das coisas
e seus nomes,
dos lugares, seus achados e perdidos,
na experiência nômade
de cada um

Um osso de frango,
fóssil esquecido na poeira,
desvelado ali, no sábado, em que
se afasta o guarda-roupa
O número do telefone ganhando
um dígito por década
A mobília, que nunca soube o que é
mudança, indispensável, posse
ancestral da família
A pilha perfumada de toalhas e lençóis,
sem ranhuras e sem câimbras,
aguardando uso

Os nomes são outra história,
herança grega, herança de Ibéria,
projetos inefáveis articulando
a cósmica vogal inicial,
o sagrado graal
em decúbito, desde sempre inscrito
no nada, quebrado pelas pias
promessas de cura,
pelas misturas de favor
e fervor, na graça divina,
e os novíssimos nomes de agora,
quase sem história

Itaperuna, tão longe,
tão perto, eis tudo que restou,
embaciado num hálito de mistério:
este lar paterno

Monday, January 14, 2008

BLITZ

O sol custou a render-se
ao mar de Atafona
Também queria assistir a Blitz
e no aço do espelho da tarde
refletir seu se-pôr

O verão no balneário é sempre assim,
uma densidade escura de peles,
as águas procurando o verde
e uma claridade só
de horizonte
sem nuvens
O Paraíba fica logo ali, na curva
do vento,
o Paraíba, rio
que o mar não dobra,
que tinge todo de si a resignação
morena das ondas

Os músicos nunca esperam
a gente, mais que o mar de Atafona
Serão Índios?
Serão Quilombolas?
Caras-pálidas, sinhozinhos
e sinhás necessitam de filtro 50
de proteção
e querem tocar o público,
querem fotografias,
chapéus, bugigangas, souvenires
de lembrança
Dirão depois que estiveram bem
ali onde outrora existiu
o Pontal

A Blitz assistia a tudo,
quem viu viverá
O sol se recusa baixar a cena,
comovido e talvez um pouco alto,
o sol, no ritmo da Blitz,
batendo breve
seu tambor

Friday, January 11, 2008

ARARINHAS

Cráa cráa
Aguardo a chegada
das ararinhas
São duas, serão
sempre as mesmas?
Pouco sei dos pássaros,
de seu concurso de cores e cantos,
se são fortes, se são frágeis
e mortais

Cráa cráa
chegaram as ararinhas,
quantas serão?
Pelo canto, uma;
pelo vôo, todas em déjà vu
o corpo esguio e as asas-tesoura
posto que o movimento
modifica os seres:
o que é pesado em leve
o que é extenso em curto
o que é bastante
em legião

Cráa cráa partiram
as ararinhas das outras manhãs,
de todas, de nenhuma,
que as manhãs
a ninguém pertence
nem a pássaros
nem a gente

Eram duas
as ararinhas,
contando em seu vôo
e canto, no viveiro
da minha rua

Thursday, January 03, 2008

NERUDA E O MEMORIAL DE ISLA NEGRA (Memória, muito apropriadamente)

Descoberta ou reinvenção de si? A diferença, existindo, ali se inscreve entre a fabricação coetânea, que ocorre em seu próprio tempo, e todas as outras definitivas, por supuesto, plantadas na irrevogável e arbitrária autoridade do presente, para todo o sempre, presente. O sujeito nunca foi o que pensa que foi, mas será para si o que acredita ter sido.

Descoberta de si, identidade marítima sobre os restos de uma compulsória paisagem natal.

e quando o mar de então
inclinou-se como torre ferida,
incorporou-se encrespado de fúria,
eu saí dessas raízes,
cresceu em mim a pátria,
foi rompida a unidade da madeira:
o cárcere do bosque
abriu uma porta verde
por onde entrou a onda com o seu estrondo
minha vida estendeu-se
com um golpe do mar, em pleno espaço.


Descoberta de si, comprometimento, um certo comprometimento, talvez impolítico ainda, com as causas hemisféricas e as lutas do povo.

Mas, daquele momento,
desses passos perdidos,
da confusa solidão e do medo,
e dessas trepadeiras,
do cataclismo verde sem saída,
voltei com o segredo:
então, somente ali pude sabê-lo,
pela escarpada margem desta febre,
ali, na luz sombria,
decidiu-se meu pacto
com a terra.


Descoberta de si, amoroso e amante, desde a tenra e macia idade de uma merenda escolar que

tudo muda:
algo girou no céu,
desprendeu-se uma estrela
ou palpitou a terra
em tua camisa,
algo incrível misturou-se à tua argila
e começou o amor a te devorar.


Descoberta sexual de si, seduzido e sentenciado pelas meninas com voz de pequenas violas ainda escondidas, sem saber se foi ou não foi, por si próprio ou levado... quem há de saber,

eu senti que mudava
algo
no meu sangue
e que me subia à boca,
às minhas mãos,
uma elétrica
flor,
faminta
e pura
do desejo.


Descoberta também poética de si, essas coisas que fazem do homem um homem, um desses que sendo tão qualquer outro, tocado pelo inominado e sem rosto, saído de um lugar ignorado, atravessa a rua e de repente não é mais: escreveu a primeira linha.

E eu, um mínimo ser,
ébrio do vazio enorme
constelado,
à semelhança, à imagem
do mistério,
senti-me parte pura
desse abismo,
girei com as estrelas,
meu coração se desatou no vento.


Descoberta profunda de si, para si somente, e mais ninguém. Mas, como? Como se, já sendo tantos, pode a unidade inegociavelmente emergir na fala egoísta que não se doa nem se transfere? Colado às sombras do muro, um homem quase se completa, mas, não, ainda não: percebe-se invisível, intocável porque tímido:

e fiquei magro, hostil como uma lança,
sem escutar ninguém
- porque eu é que impedia –
encerrado
como a voz de um cachorro ferido
desde o fundo de um poço.


Neruda não nasceu ainda no tempo de dentro do poema, já nascido naquele que o circunscreve e faz chorar o poeta, comovido, na descoberta de si. Descoberta que não serve ao passado, senão que projeta-se, imponderável, rumo ao futuro. Isto é memória.

Wednesday, January 02, 2008

Fragmentos de um discurso de Ano Novo

Conservar a vida
Cuidar do corpo e da mente
Correr menos, desacelerar
Nunca antecipar, sobretudo problemas
(a cada um o seu próprio tempo)
Reconsiderar, fazer as pazes com o dinheiro
Tolerar, e ainda tolerar sem resignação
Aumentar minha fé

Passar o café da manhã
(sempre mais do quanto for possível beber)
Desconfiar que o problema da bebida
é a freqüência e a moderação
(que não sou alcoólatra)
Parar com o que não serve
e o que serve, guardar
(até quando?)

Fugir de lugares-comuns
no próximo discurso de Ano Novo