Monday, October 30, 2006

NOVAS DESCOBERTAS

Nada é preciso
do a ao z

De uma secura infinita faz-se a canoa e
de canoa não se vai a parte alguma
além daqui mesmo

Nem mesmo viver é preciso
com todas as letras

No atualíssimo alfabeto das águas
navegar é um risco

Saturday, October 28, 2006

TARDE DEMAIS

há um deus guardado no porão
eu o esqueci trancado lá
faz uns trinta anos

vendeu-se a casa
perdi o acesso ao porão

a infância desopilou sem culpas

eu não podia
ninguém poderia
recluso nos próprios dias

demasiadamente sensato e humano
imaginar um deus protegido

aguardando as chaves

Friday, October 27, 2006

ALMAS GÊMEAS

ainda é minha
aquela cor azul, Irmão
qualquer azul qualquer cor
oculta e xadrez bem de dentro de ti
nos tons que só tu possuías em meu universo
- talvez aquilo que era teu e apenas teu
carrego comigo nessa perpétua
busca de ser como tu
de sermos um só

numa ambigüidade linda que é um erro
de Deus feito corpos divisíveis

Saturday, October 21, 2006

VOZ & VIOLÃO (acabou chorare)

(Imão)

então você cortou a mão
espremendo o vidro d'água
contra a parede cinza
era uma noite fria de maio
junho ou julho sei lá
no apezinho do mar & terra
na ilha do governador
minha garganta era uma bola
de febre sorriso espinhos
febre alta dor intensa
o corte tão fundo! e o dedo
menor sem dobradura
éramos só futuro
você e eu sem futuro
assustados temendo o futuro
você não vai mais tocar
eu miúdo sem voz
ambos sós e
só somente só
assim vou lhe chamar
assim você
vai ser

Tuesday, October 17, 2006

KEROUAC ORANDO

tu e ele e ela igualmente vazios
a serem amados igualmente
igualmente Budas que estão por vir
mais o deserto e as montanhas
e o frio e o calor intensos
nada que não caiba numa mochila
nada que não se leve nas costas
nada que não mereça um outro vinho
que não se veja nos olhos
que não se proteja do tempo
muito verdadeiro
muito inconstante sei lá
como a roda girando
o poema de cor

Monday, October 16, 2006

MEA CULPA (um fragmento pós-socrático)

tudo que sei é que não
posso mais com o que fiz que
sei que não sei
que fiz de
mim

Sunday, October 15, 2006

MAIS-QUE-IMPERFEITO

pra Clair

certos poemas
se fazem andando
poemas de corpo
e mente sãos

ah, os poemas que se fazem amando!
são poemas em combustão...

são poemas
que nunca aspiram
nem tempo
nem perfeição

palavras que em vão transpiram
menos à tinta e mais à mão

esses poemas imperfeitos
hum, alguns sim
outros não

Saturday, October 14, 2006

ADEUS, RIMBAUD

“E temo o inverno por ser a estação do conforto!”
(Arthur Rimbaud)

o café sempre frio hei
de bebê-lo à sombra das manhãs

que espero da vida? a vida essa
locomotiva desgovernada

o tempo sempre veloz sobretudo à noite
desesperadamente sem freios

o café está frio e não posso aquecê-lo
como se não bastasse ainda

o medo pelo que poderei desfazer

Wednesday, October 11, 2006

TEMPO

Tempo resfria e pega
(derruba recolhe põe de cama)

Tempo é gripe:
injeta vermelho nos olhos

faz lacrimejar
(polvilha a barba de branco)

Impregna de medo até a alma
Tempo inutiliza

Monday, October 09, 2006

BODAS DE PORCELANA (um romance incidental)

Para Cleir

september, 11
duas torres gêmeas
no chão

o orgulho
da águia atingido
no vôo

símbolos
sem tempo
do mal

agosto, 11
duas almas gêmeas
se doam

faz tempo que
existe, faz tempo
não tem

tão acima
do mal ou do
bem

Sunday, October 08, 2006

ITAMBI MACONDO (uma inscrição rupestre)

dalvan não cresceu nunca com quase dois metros de altura
também permaneceu menino durante quarenta anos

dizia coisas estranhas num dialeto esquisito mastigando
palavras com as gengivas soltas e golpes de maxilares espumantes

[dizem que erik maneiro vai aos poucos desadolescendo até
tornar-se naturalmente herdeiro de nenhuma de suas extensões]

[suely anda sofrendo desordenadamente desde que não
soube onde foi parar dalvan nem o que fazer com erik e seu estilo]

pois que de repente dalvan cresceu tudo envelheceu
trocou a pele criou asas voou (durante um jogo do fluminense)

e foi pro céu

Friday, October 06, 2006

BEM-TE-VI (um grafite campista)

sobre os ombros
da casa (do mundo)
a tudo assiste:
o edifício erguendo-se
na paisagem triste

ossos expostos
tijolos cozidos
vergalhões, vozerio:
ativista concreto
grafita o vazio

entenderá mutante
o desenho fabril?
intenso e diário
o edifício no ofício
de gris operários

só um instante:
súbito o pássaro
(urgência sem pouso)
despeja o mundo e
a casa no vôo

Thursday, October 05, 2006

RELICÁRIO

mandei vir do Japão
um souvenir de Hiroshima
do Golfo via internet
encomendei artefatos inteligentes
despachei dois golpes de estado
dos labirintos da América
e finalmente num lapso de ternura
esqueci as crianças cubanas
e verti uma lágrima azul
à manhã de Manhattan

Wednesday, October 04, 2006

ESTRATÉGIA

Meus filhos encontram bandeiras
em brinquedos de montar e desmontar
Descobriram que as nações nórdicas
têm bandeiras em cruz
Descobriram ainda que mesmo
sobre faixas e colunas coloridas
há uma ordem na leitura das cores
Se perdem
momentaneamente o interesse
as bandeiras adernam
sem nada que lhes proteja do arbítrio
que a saturada nação dos meninos
impõe à ordem internacional

Tuesday, October 03, 2006

TESTAMENTO

Para Cleir, Emmanuel, Fernando

no princípio
eram sós; caminhos
e o encontro no infinitivo

[amar]

depois andar
e eleitos nesse caos bíblico
desordenadamente

[crescer]

multiplicados
enfim, vários e divididos
em faces e destinos

[sair sem sair]

Monday, October 02, 2006

SÍSIFO REVISITADO (na formação de professores)

Para Sandra Selles

É, doendo, o tempo, essa doença
da infância, a gerar velhos de nascença?
(Carlito Azevedo)

Será, quem sabe, a formação a experiência
de inocular num broto tal doença?

Ou será, talvez, a formação, a cura
da experiência nessa imponderável loucura

de traduzir a finitude do que termina
no recomeço sem fim de quem ensina?

Sunday, October 01, 2006

SIGNO

O cheiro de virgem exala
num corpo que não se pertence
Mãos que não as suas tocando o que deseja
Suas mãos sem uso no espaço acolhendo
intangível abismo sem luz alheia
verdade que os lábios murmuram:
-Não posso, não posso...