BOA VIAGEM
(I)
Ela era reconhecida nas redondezas. Aquela figura negra, franzina e frágil de moça, a aparência feminina de cabelos na tintura, um cinza mal dissimulado de pelos sob a massa de pó de base, no fundo do tempo que a geral aparência cuidava de ocultar, talvez ignorar, bem lá no fundo daqueles olhos mortiços e sem cílios, à exceção dos conhecidos, não havia quem descobrisse sem susto, remotamente, ao avesso das evidências, na pele dela um homem. Sedutor e arrojado, um homem encarando todos os homens, capoeira de pernas finas e ligeiro nos passos, encará-lo também talvez levasse a aceitar o desafio ou o convite proposto no papel dele pela mulher oculta. Bem conhecida a bicha não era; conhecida, talvez; reconhecida, sim, quase sempre.
(II)
A municipalidade, a associação de moradores, os prédios e as casas convencionaram que o lixo do bairro, ensacado e reunido num amontoado discreto nas calçadas, seria recolhido dia sim, dia não pelo caminhão. Esqueceram de incluir a cachorrada, os moradores de rua, as crianças vadias e o pessoal do morro no combinado. Julgando implícita a generalidade do acordo, de fato ninguém concordava que o lixo fosse revirado, por isso alguns evitavam, outros fingiam ignorar e uns poucos, agressivos, se indignavam com todos aqueles seres que o caminhão, na pressa dos garis ao lusco-fusco do final de tarde, se quisesse poderia levar.
(III)
Quando eu morrer, acho que levo meus textos comigo. Por isso hei de fazê-los bem leve, para que não pesem na alfândega, e que passem no teste dos éteres. Ou, se não levá-los, não me vou por inteiro: deixo neles um pouco de mim, respirando pão de padaria e cheiro de maresia no oxigênio da Boa Viagem. Levemente e para sempre.
(IV)
Mata tem motor? Acordei no escuro com o apito no morro verde funcionando. Eram cigarras.
(V)
A bichinha saiu do monte de lixo sem mãos para tanto embrulho: o azul aprisionado no garrafão vazio, o brilho cantante do cd quebrado, a prata dos fios de embrulho e o metalizado no papel de presente, o passado rack de uma caixinha de madeira, caloria de meio hamburger e a mordida interrompida no excesso, mil e uma utilidades e um grave erro de entrega em cada objeto feito sob medida para o cantinho que habitava.
(VI)
Multado pela prefeitura, o caminhão do lixo teve trabalho pesado de manhã.
Ela era reconhecida nas redondezas. Aquela figura negra, franzina e frágil de moça, a aparência feminina de cabelos na tintura, um cinza mal dissimulado de pelos sob a massa de pó de base, no fundo do tempo que a geral aparência cuidava de ocultar, talvez ignorar, bem lá no fundo daqueles olhos mortiços e sem cílios, à exceção dos conhecidos, não havia quem descobrisse sem susto, remotamente, ao avesso das evidências, na pele dela um homem. Sedutor e arrojado, um homem encarando todos os homens, capoeira de pernas finas e ligeiro nos passos, encará-lo também talvez levasse a aceitar o desafio ou o convite proposto no papel dele pela mulher oculta. Bem conhecida a bicha não era; conhecida, talvez; reconhecida, sim, quase sempre.
(II)
A municipalidade, a associação de moradores, os prédios e as casas convencionaram que o lixo do bairro, ensacado e reunido num amontoado discreto nas calçadas, seria recolhido dia sim, dia não pelo caminhão. Esqueceram de incluir a cachorrada, os moradores de rua, as crianças vadias e o pessoal do morro no combinado. Julgando implícita a generalidade do acordo, de fato ninguém concordava que o lixo fosse revirado, por isso alguns evitavam, outros fingiam ignorar e uns poucos, agressivos, se indignavam com todos aqueles seres que o caminhão, na pressa dos garis ao lusco-fusco do final de tarde, se quisesse poderia levar.
(III)
Quando eu morrer, acho que levo meus textos comigo. Por isso hei de fazê-los bem leve, para que não pesem na alfândega, e que passem no teste dos éteres. Ou, se não levá-los, não me vou por inteiro: deixo neles um pouco de mim, respirando pão de padaria e cheiro de maresia no oxigênio da Boa Viagem. Levemente e para sempre.
(IV)
Mata tem motor? Acordei no escuro com o apito no morro verde funcionando. Eram cigarras.
(V)
A bichinha saiu do monte de lixo sem mãos para tanto embrulho: o azul aprisionado no garrafão vazio, o brilho cantante do cd quebrado, a prata dos fios de embrulho e o metalizado no papel de presente, o passado rack de uma caixinha de madeira, caloria de meio hamburger e a mordida interrompida no excesso, mil e uma utilidades e um grave erro de entrega em cada objeto feito sob medida para o cantinho que habitava.
(VI)
Multado pela prefeitura, o caminhão do lixo teve trabalho pesado de manhã.
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