Monday, March 26, 2007

EX-VOTOS NA ESTANTE

Quanto tempo faz que trago comigo essa grandiosa Teoria da História do Brasil, extensíssima introdução metodológica na qual José Honório ensina que O presente interroga o passado, mas não resgata o passado de si mesmo, senão daquilo que ao presente parece relevante, e interrogado bem da forma que lhe convém, e que isto é a História, porém que a despeito de cultíssima argumentação me impunha interrogar também a teoria, ou melhor, o projeto de futuro ou reformista ou revolucionário que lhe deu vida e em cuja produção, desbastando espinhos e arbustos na faina diuturna de um ofício, embebia-se como um lancaster no palor da heráldica, da numismática, da genealogia, da cartografia e do que mais há de vir em seu luxuoso auxílio. (Ó céus, e há quanto tempo dentro do tempo esteve também ali aquele marcador que era um cartão do Opus Bar e Restaurante anunciando música ao vivo e vídeo e teatro infantil em Itaperuna, cidade tão amada quanto distante!) Mas não mais...

Desde quando contemplo na estante as listas azuis sobre fundo branco da nona edição do La Revolución Teórica de Marx, da pena vibrante do francês Louis Althusser, que depois se matou numa revolução pessoal insensata devorando a si mesmo, edição cultuada e elegantíssima da Siglo Veintiuno que ensaiei doar, mas não pude, suspeitando que não soubessem cuidar dela, como assoprar a poeira de suas páginas longe da exigência de meus olhares quase cotidianos, mais degustativos que leitores, ou do toque de meus dedos que menos folheiam que alisam e capturam digitais sensações de aspereza e planura, ou de minhas narinas ávidas, ou da umidade da língua, enfim, que sempre chega primeiro num estranho vício que mistura sentidos fazendo suceder e permutar experiências de lamber e cheirar papéis. (Aprisionando também a infatigável dúvida de acentuação na pronúncia entre o assento no u de Althússer ou no e de Althussér, o que no fundo distinguia um seleto grupo dos que possuíam o segredo da correta e admirável pronúncia!) Mas não mais...

E agora Quando intento trocar a edição de mil novecentos e setenta e sete do Poema Sujo; a de mil novecentos e oitenta de Na Vertigem do Dia; a de mil novecentos e setenta e cinco de Dentro da Noite Veloz com a insinuante dedicatória do Dim escrita de próprio punho, naquele remotíssimo vinte de dezembro de setenta e sete, e que me alfabetizou no escrever poesias, tomado de pedagogia nas mãos do último verso de Pela Rua, pelo qual se sabe que o poeta espera a coincidência do encontro impossível numa cidade de quatro milhões de habitantes (Ah, se ao menos fosses mil disseminada pela cidade) enquanto o coração repete um nome, o coração sufocado pelos barulhos e ascendendo aos ares numa ventura de balão que mais suspende quanto inspira Solto ao fumo da gasolina queimada, ou seja, dispensar todas as edições gastas pelo uso em face da recolha pasteurizada de Toda Poesia, que de resto não condiz com o desalinho sistemático de Gullar. (Dizia o coração, ah o mesmo coração que sabe que No mundo há muitas armadilhas e dentre elas aquela emboscada Na quebrada do Yuro, às treze e trinta horas, a armadilha sutil de ouvir da Anaconda Cooper que não Serei cantor ou poeta, nem pederasta, nem homicida!) Mas não mais...

Nada disso importa agora, ah não mais Quando pela terceira vez me troca a pele de livros, e como dói. Talvez pela ameaçadora possibilidade de que seja esta vez a última vez, como um velho pássaro em derradeira muda, nada disso importa. Talvez pela assustadora possibilidade de que assim seja, e nem as citações em notas de pé de página do quanto este corpo registra, ou de tudo que assina a alma, nem as referências, nem as consultas, nem os recursos possam muito garantir. Talvez, enfim, porque tenha chegado o tempo dos tempos, aquele em que são inúteis todos os argumentos, em que são dispensáveis todas as opiniões, em que a verdade professada pelo corpo em queda duvida, ele dela, de todas as verdades, posto que Gregor Samsa jaz inerte em seu próprio exoesqueleto quitinoso de páginas numeradas. Nada disso importa agora, Quando não sei o que mais fazer com os livros que restaram depois de todos os livros que eram e não mais, pois sim. E o vazio na estante espreita na iminência insofismável de um vazio da estante cujo espaço encontrará doravante nova serventia.

Thursday, March 15, 2007

EMMANUEL FERRY

Ser imortal é insignificante; com excessão do homem,
todas as criaturas o são, pois ignoram a morte.
J. L. Borges

De repente a vida nos põe a viver duas experiências próximas uma da outra, duas experiências aparentemente distintas, lado A e lado B, e adianta perguntar Por que, vida, Será que por que uma não permite senão compreender melhor o significado da outra. Lado A, De repente como que do nada a Mãe me chama até ao quarto e me faz ver Emmanuel chorando, mais que chorando simplesmente, convulsivamente chorando e abandonado aos solavancos daquele grande corpo branco tomado de emoção. Por que chora, Emmanuel, perguntava e ele não podia responder, insistia e ele me abraçava e ainda mais chorava do que antes, Por que, Emmanuel, e nada. Até que a Mãe explicou que ele estava lembrando. Enquanto a tarde morna caía lentamente sobre os edifícios niteroienses, Emmanuel com seus ruídos em sépia e cheiros de motor de serraria funcionando e notas antigas citadas no vento, Emmanuel, que então chorava, caía fundo no poço sem fundo do tempo rumo ao passado, até aquele ponto preciso de uns dez anos de vida na varanda da casa chutando bola com o Irmão, sem saber que arremessava uma espécie de bumerangue para o futuro, ou melhor, para si mesmo condenando-se a voltar sempre às próprias mãos atiradeiras. Eu retruquei que algum dia ele estaria chorando por esse momento em que estamos abraçados e ele só disse Que se lembrava sempre da mesma coisa e do mesmo momento. E eu que chorara quase uns dois dias antes, Lado B, lendo o filósofo Ferry que numa entrevista dizia Que não é apenas o fim da vida, mas a experiência do tempo e de sua finitude dentro da vida, no sentido de momentos irreversíveis que voltam à experiência vivida apenas para lembrar que nunca mais voltarão em si mesmos, como vivências mais uma vez, que isto sim, este escapar sem remissão nem retorno, significava morrer e então Emmanuel chorava porque estava tendo, naquele cair de tarde niterioiense, a líquida e exata e essencial e invencível experiência pessoal da morte.