Thursday, January 03, 2008

NERUDA E O MEMORIAL DE ISLA NEGRA (Memória, muito apropriadamente)

Descoberta ou reinvenção de si? A diferença, existindo, ali se inscreve entre a fabricação coetânea, que ocorre em seu próprio tempo, e todas as outras definitivas, por supuesto, plantadas na irrevogável e arbitrária autoridade do presente, para todo o sempre, presente. O sujeito nunca foi o que pensa que foi, mas será para si o que acredita ter sido.

Descoberta de si, identidade marítima sobre os restos de uma compulsória paisagem natal.

e quando o mar de então
inclinou-se como torre ferida,
incorporou-se encrespado de fúria,
eu saí dessas raízes,
cresceu em mim a pátria,
foi rompida a unidade da madeira:
o cárcere do bosque
abriu uma porta verde
por onde entrou a onda com o seu estrondo
minha vida estendeu-se
com um golpe do mar, em pleno espaço.


Descoberta de si, comprometimento, um certo comprometimento, talvez impolítico ainda, com as causas hemisféricas e as lutas do povo.

Mas, daquele momento,
desses passos perdidos,
da confusa solidão e do medo,
e dessas trepadeiras,
do cataclismo verde sem saída,
voltei com o segredo:
então, somente ali pude sabê-lo,
pela escarpada margem desta febre,
ali, na luz sombria,
decidiu-se meu pacto
com a terra.


Descoberta de si, amoroso e amante, desde a tenra e macia idade de uma merenda escolar que

tudo muda:
algo girou no céu,
desprendeu-se uma estrela
ou palpitou a terra
em tua camisa,
algo incrível misturou-se à tua argila
e começou o amor a te devorar.


Descoberta sexual de si, seduzido e sentenciado pelas meninas com voz de pequenas violas ainda escondidas, sem saber se foi ou não foi, por si próprio ou levado... quem há de saber,

eu senti que mudava
algo
no meu sangue
e que me subia à boca,
às minhas mãos,
uma elétrica
flor,
faminta
e pura
do desejo.


Descoberta também poética de si, essas coisas que fazem do homem um homem, um desses que sendo tão qualquer outro, tocado pelo inominado e sem rosto, saído de um lugar ignorado, atravessa a rua e de repente não é mais: escreveu a primeira linha.

E eu, um mínimo ser,
ébrio do vazio enorme
constelado,
à semelhança, à imagem
do mistério,
senti-me parte pura
desse abismo,
girei com as estrelas,
meu coração se desatou no vento.


Descoberta profunda de si, para si somente, e mais ninguém. Mas, como? Como se, já sendo tantos, pode a unidade inegociavelmente emergir na fala egoísta que não se doa nem se transfere? Colado às sombras do muro, um homem quase se completa, mas, não, ainda não: percebe-se invisível, intocável porque tímido:

e fiquei magro, hostil como uma lança,
sem escutar ninguém
- porque eu é que impedia –
encerrado
como a voz de um cachorro ferido
desde o fundo de um poço.


Neruda não nasceu ainda no tempo de dentro do poema, já nascido naquele que o circunscreve e faz chorar o poeta, comovido, na descoberta de si. Descoberta que não serve ao passado, senão que projeta-se, imponderável, rumo ao futuro. Isto é memória.

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