Monday, November 30, 2009

EXISTIR EM NEGRO

Ou, para alguns, nem existir. Aprendi que o preto é ausência de cor e que ausência mistura-se com perda, confunde-se com luto, a face mais visível da dor por dentro e por fora. Também aprendi o quanto seduz o negro, pelo que não se mostra e pelo que obstinadamente quer mostrar, cultuando suas próprias cores no recesso da luz. É no escuro que o fotógrafo faz convergir seus varais em paralelas impossíveis. Na inflorescência dessas nenhumas cores lembrei de Cláudio; ele era assim, sedutoramente negro nas roupas e nos dentes, ensinando filosofia entre assovios nas cavernas míticas de nossas mentes obscuras, num período esplendorosamente trevoso daquelas vidas adolescentes, lá pelo final dos anos setenta. No alto das escadarias do ICHF, quase todo fim de tarde, lá estava ele, qual fênix negra recém chegada de indescritíveis tragédias ancestrais, reduplicando seus próprios temores, ao redor, ao longe e para sempre.

Tuesday, November 24, 2009

EXISTIR ENTRE VIOLETAS

Que cor meus olhos procuram na cor violeta, para quem convergem menos tristes, feito olhar mais comprido, que direção partilham no osso do esquecimento? Violeta que é cor e flor, textura e perfume, adorno improvável naquelas tardes quentes do grupo escolar, a professora ainda tão jovem, tão franzina, sempre de pé! A turma atrevida, só de meninos, desafia e sustenta olhares. Meus olhos erram, e de má conduta encontram, sabem-se lá porque erros, aqueles minúsculos caminhos de sangue sob a superfície branca de suas pernas. Mergulhando em direção aos pés, prosseguindo no que se imagina para além da barra do vestido, quase imperceptível (não fora arteiros e curiosos olhares que procuram...), aquela floração de violetas sutis que demora alguns anos para vir, depois não cessa jamais de florar. Numa tarde daquelas, outra professora de castellana pele e autoridade, numa cidadezinha qualquer, aprendera La Violetera no rádio antigo, sob entusiástica e imaginária aprovação de Sarita Montiel, que lhe atira de intangível distância um pequeno ramo de violetas naturais.

Sunday, November 22, 2009

EXISTIR EM ARCO-ÍRIS

A pele muita branca e muito fina, que cor restaria depois de um dia tão intensamente solar como aquele? Encontrei por acaso um clip do Marmelade tocando Rainbow, com aquela arte dos anos 70 que relativiza o tempo, tão psicodelicamente próximo e diverso de você agora, tão incomensuravel a distância entre as estrelas nas duas pontas do arco-íris, deve ter rodado no Jornal Hoje. O presente é psicodélico neste admirável mundo novo. O que faria os camponeses de Thomas Muentzer tomarem para a si a bandeira do arco-iris que não outra crença fantástica numa nova era? Quando metade do céu ainda está escuro da chuva que não cessou de cair e você se posiciona do lado claro do dia, então você vê: o vermelho é a luz, laranja cura, amarelo é o próprio sol, o verde é a calma, azul é arte e lilás espírito. Saiu cedo de casa, na verdade, antes que pudesse constatar o que já se esperava, o que já se sabia desde que a moça do tempo disse e avisou no jornal. O que há de comum entre o gay pride e as demandas de internacionalismo e unidade dos povos além de seus símbolos? A moça do tempo de fato alertou, sobretudo aos de pele muito fina e muito branca: protejam-se do que vem mais além do arco-íris e não é pote de ouro, nem estrela pontiaguda e fria. Protejam-se daquilo que sobeja e se espalha à velocidade da luz, protejam-se do tempo.

Saturday, November 21, 2009

EXISTIR EM LISTAS VERMELHO E PRETO

O árbitro autorizou o início da partida. Muita gente à beira do gramado, como sempre aliás, fez atrasar em não menos que cinco minutos o pontapé inicial. O primeiro toque curtinho do meia ao avante e o avante, num largo movimento das pernas compridas, atrasou a bola até o zagueiro que despachou para o ataque. Depois de um começo estupendo, nenhum dos dois times atravessava um bom momento no campeonato, acumulando insucessos renitentes e consecutivos. A bem da verdade, o coração dele batia mesmo por outras cores e outros nomes, mas futebol é futebol, sabe como é, bom de assistir quase sempre, independentemente do jogo. Sua paixão, aliás, embalada em vivas e inebriantes tonalidades rubronegras, vinha em forte ascensão rumo às primeiras posições, quiçá ao título do campeonato. Fato que por si mesmo tornava qualquer outra partida particularmente interessante já que, por uma combinação ainda que remota de resultados, uma imprevisível e conspirativa aceleração de partículas aproveitaria o vácuo entre cada posição e suas adjacências mais imediatas, para resultar, finalmente, num sobe-e-desce de dar nos nervos mais serenos (como o do frio cientista social acostumado às nervosas flutuações micro e macro-econômicas e já arrependido de ter sucumbido, por vaidade ou não, à conjunção de forças que o levou à presidência do clube alviverde, agora exposto a um retumbante fracasso). Aos trinta e oito minutos sairia o primeiro gol (ainda viriam dois outros em sentido contrário). O ala foi lançado pela direita numa bola estranhamente precisa, dessas que parecem ter velocidade positiva e aceleração contrária, quando você jura que vai sair pela linha de fundo ela perde força e quica inteira à disposição do atacante; então o ala bateu com a canhota, a bola ricocheteou na zaga e foi morrer no fundo do barbante. Duas horas e três minutos mais velho, pensando aproximadamente as mesmas coisas sobre o amor e os valores intrínsecos à realização das potencialidades mais fundamentais do gênero humano; sobre a beleza da vida e a inexorabilidade líquida e certa da morte; já indiferente ao tempo do jogo que a crônica esportiva estenderia, certamente, até a realização da próxima partida, qualquer outra partida, indiferente ao próprio tempo consumado em gratuidade e abundância, desligou o aparelho de televisão e abandonou a sala.

Friday, November 20, 2009

EXISTIR EM FURTA-COR

Ando investindo numa estratégia de captura do tempo, o tempo mesmo, que no estágio atual das minhas buscas se parece com o predomínio sincero de uma cor. Tentei sépia, uma cor que é matriz na impressão de cores; arrisquei o preto e branco, essa disposição de todas e nenhuma cor na elegância precisa dos contrastes; estou tentando a cor difusa, a cor diversa e singular, cambiante segundo a intensidade e a direção da luz, que não é todas ou nenhuma e talvez nem mesmo seja uma cor: a falsa ou o furta-cor. Sim, porque o tempo também oscila na veloz intensidade da luz, entre sentidos que os sujeitos produzem para as coisas, seus lugares, colorindo-se todo de furta-vidas.

Thursday, November 19, 2009

EXISTIR EM BRANCO E PRETO

Nas paredes do prédio antigo o restaurador encontrou cinco camadas sucessivas de tinta sobre a pintura original. Entre a terceira e a quarta eles estavam lá, faz muito tempo. Os nomes ecoando por dentro, a gritaria das crianças levando adiante o domingo, a cozinha temperando com cheiro próprio o aroma da família, os velhos que não se animavam a descer (não fazia frio), as sensações comuns, os pequenos sentimentos ou a falta deles, coisa que a indiferença de viver enquanto vivemos deposita no tempo que vai passando, o sofrimento quando a doença aproximou do fim e o fim mesmo, a ausência de tudo depois que acabou e os novos moradores mudaram enfim a cor das paredes.

Wednesday, November 18, 2009

EXISTIR EM SÉPIA

As coisas tiveram seus usos antes do estado em que agora se encontram. As pessoas consumiram-se em vivências e histórias, grandes ou mesquinhas. Os lugares também, habitados ou dispostos ao sabor de incertas ocupações. Os velhos foram jovens outrora, cometeram tolices, disseram bobagens com seriedade e suspense e emoção. Os lugares, só porque foram ocupados algum dia, ocultam secretamente um grampo na fresta do assoalho, a antiga moeda submersa na poeira junto ao rodapé, uma carta de santo com a efígie para baixo, do outro lado a oração que evoca os poderes de sua interseção precisa na ordem do divino. Os que vêm depois inventam outra ordem para os lugares e suas coisas, nesse meu caos pessoal. Envelhecer é uma viagem sem volta à estação nostalgia.

Thursday, November 12, 2009

DIETA ZEN

(pro Fernando)

Lênin defendeu recuo tático
e avanços estratégicos
um passo atrás, dois à frente
Boff preferiu o silêncio obsequioso
um passo com mil
a mil passos com um
Buda ensinou, o budismo
desde então vem aprendendo
a trilhar com fé o caminho do meio
vida, ritualizar nem sempre será
uma opção pelos extremos
– só tristeza, só melancolia –
uma porção de chocolate
um torrão de açúcar
ah, felicidade e saúde e energia
no caminho da sabedoria

Friday, November 06, 2009

FARÓIS FUTURISTAS

olhe ao largo com os olhos do tempo
a mocinha de vestido justo, o rapaz
tatuado de bermuda e cabelo de veludo
os automóveis flamejantes, a claridade
lunar de um sol de verão, quase verão
miríades de barraquinhas multicoloridas
derramadas na areia em camboinhas

vestidinho justo entra e sai de moda
os carros oxidam sujos no desmanche
barbatanas e bermudas fósseis, tatuís
suicidas, tattoos naufragam em rugas
novas ondas ao largo das estações
o sol de verão descolore em sépia
camboinhas são os olhos de um peixe

Wednesday, November 04, 2009

GOSTAR DE SI

(pro Maurício)

maneiras simples de gostar de si
dar um tempo pras fichas todas caírem
devorar um livro sem se importar com a fome
do que, comprar uma roupa mais cara que
o salário e não ter onde ir nem planos
desperdiçar as horas, perdulário
com o tempo que, tudo bem
anda escasso, não tomar
banho todos os dias
achar-se perdido
e namorando

Monday, November 02, 2009

FINADOS

este ano promete chover
é finados – e a memória da chuva
como o doce das frutas que estão passando
do tempo, dorme na promessa
em arco que se renova
e cumpre

Sunday, November 01, 2009

RUA DA AJUDA

1. fale conosco

senhor Alguém:
há sete meses
estou tentando
essa certidão
que não vem
(ass: Ninguém)

ilmo Ninguém:
que são sete
meses se há quem
espere mais
sete vezes
(ass: Alguém)

sete vezes sete
eu no lucro; você, me diga
é blefe ou mentira?

2. São Judas Tadeu

senhora, senhorita
trato como a burocracia?

desacatar cidadão
no exercício civil
roubar-lhe o sono
na madrugada
propor ruídos, pesadelos
sobrecarrega das funções cardíacas
despertar furores e indignação
não é crime?

sujeita o infrator
a trabalhos forçados?

dona burocracia
a senhora teria
intimidade?
quem sabe
juizado, foro íntimo
relicário pras causas difíceis?
acaso teria
poesia
sentimento do mundo
fé, medo do eterno e mandinga?

a senhora fuma, um cigarro
antes ou depois?