EXISTIR EM ARCO-ÍRIS nº 2
A capa do álbum The dark side of the moon proporciona ao ouvinte, já quase bêbado na presença iminente da grande e misteriosa bolacha negra do elepê de Pink Floyd, uma experiência visual inesquecível. Numa área quadrangular de aproximadamente novecentos e sessenta centímetros quadrados, um facho estreito de luz branca vindo da esquerda atravessa a escuridão para tocar o lado de um triângulo eqüilátero, apenas esboçado por uma luz difusa e indireta, proveniente de alguma fonte externa cuja posição e forma não é possível identificar, posto que apenas delineia por dentro, em cinza azulado, os três lados da figura. Não fosse o fato de o triângulo ter seu circuncentro localizado um pouco acima do ponto de encontro das diagonais do quadrado da capa, dir-se-ia que ele está situado bem no centro de toda a composição. Não obstante, presume-se que a figura, com seus lados traçados pela claridade de um improvável luar, corresponderia a uma das faces sólidas de um prisma, de modo que ao tocar seu primeiro lado, o facho de luz começa a se decompor em refração por detrás da superfície triangulada, novamente refratado ao tocar o lado oposto da figura, retomando o percurso na escuridão que segue para além do triângulo, agora fracionado nas cores do espectro, ou em seis delas, posto que não aparece o anil entre o azul e o violeta, alargando-se conicamente, enfim, até a borda da capa do disco. Tenho-a comigo bem guardada ainda, a capa protegida por um grosso envelope plástico transparente que evita as manchas, inclusive a própria digital dos dedos suados de um improvável espectador: ela está impecável, a despeito de seus exatos trinta e seis anos de edição. Dito isto, retiro o plástico que protege o papel e ela se desdobra em duas, formando um retângulo de mesma altura e base agora duplicada, reproduzindo do outro lado a mesma figura da primeira capa invertida e ligeiramente ampliada. No conjunto, o mesmo facho de luz encontra as duas faces distintas de dois prismas – à direita e à esquerda – que ao refratá-lo, produzem a separação da luz em cones de cores espectrais. As páginas internas da capa trazem, no alto e à esquerda, a relação das músicas (Side One: 1 Speak to me; 2 Breathe; 3 On the run; 4 Time; 5 The great gig in the sky. Side Two: 1 Money; 2 Us and them; 3 Any colour you like; 4 Brain damage; 5 Eclipse, com a devida indicação de autoria) e a composição da banda (David Gilmour, Nick Mason, Richard Wright e Roger Waters, com seus respectivos instrumentos); à direita, a ficha técnica do disco. De uma ponta à outra essas páginas centrais são divididas em duas por uma faixa cromática horizontal que parte precisamente do lugar onde os cones espectrais tocaram a borda das capas externas. A linha verde, quarta linha de cima para baixo, pulsa em quatro pontos regularmente eqüidistantes, à maneira de um registro cardiográfico. Finalmente, a parte de baixo dessas páginas de capa trazem as seis letras cantadas (A 1 e 4; B 1, 2, 4 e 5), sendo que as outras quatro são músicas instrumentais. Oh, admirável mundo pós-moderno esse em que espaços e tempos se comprimem na virtualidade de uma longa, furiosa, interminável multiplicação de coisas e instantes! A capa correspondente do compact disc, editado cerca de vinte anos depois, é uma pálida recriação daquele primeiro elepê, trocando a exuberância mágica do original (que os olhos não dão conta por inteiro de um relance) por ganhos líquidos de informação e imagens de computação gráfica, recolhidos num encarte de vinte e quatro páginas condensadas em escassos cento e quarenta e quatro centímetros quadrados de área, em todo caso disponível para que o vinil repouse serenamente, e para sempre, na seção de obras raras, na memória silenciosa das minhas retinas.