Saturday, February 03, 2007

ATÉ QUE O AMOR NOS SEPARE

“A grande prova de sabedoria é ter presente
que mesmo os sentimentos devem saber administrar o tempo”
(Saramago)

Ouvi de alguma fonte não sei mais qual nem aonde, embora já isso agora nem importe, eis que a fonte multiplicada e dispersa aqui está, passando adiante esta certeza com a força concreta de uma esperança material em algo novo, um mundo e uma vida renovados, já tangíveis nos interstícios do dia, que Os anos ímpares são um tempo de inovação, posto que a imparidade do número em si mesma expressa o movimento, atributo e crença que remontam talvez à consciência pitagórica de que todas as coisas são números ou de que os números sejam entidades corpóreas que avançam em direção à essência do universo a partir do um, materialidade simples do ponto, para atingir ao dois, deslocamento do ponto cujo rastro é a linha, expandindo-se em direção ao três, expansão que gera o plano e faz supor sua inserção no continente do quatro, volume envolvente que prepara o advento do cinco, quintessência material das virtudes, última estação entre a harmonia e a desarmonia cósmica, perspectiva e possibilidade imanente do imprevisível, semente perpétua do desequilíbrio.

Ele e Ela, cada qual ao seu modo, acreditavam com tristeza e pesar nessas alvíssaras anunciadas pelo ano ímpar. Conservaram, afinal, vinte anos de casamento, quantidade triplamente par pelos vinte, mas ainda pelo dois e o dez das duas décadas de bodas infelizes, embora o ímpar se imiscuísse mágica e misteriosamente na seqüência de quantidades pares que articulavam o tempo de convivência, afinal eram três os números pares, além do que, computado o ano que antecedeu ao matrimônio, conheciam-se a rigorosos vinte e um anos. Vinte e um anos de ódio, se não parecesse carregada em tintas a expressão. Digamos então que foram vinte e um anos em que as velas que conduziam o barco dos dois juntos foram violentamente açodadas pelo furacão do ódio, em que mais de uma vez arquitetaram juras de vingança e planos de morte e mesmo os filhos, pobres figos nascidos de figueira má em solo ruim posto que condenados à infertilidade estéril, a despeito dos raros momentos da oculta felicidade que gravitava em ambos, eram bólidos arremessados por um na direção do outro dizendo ele Vais engordar e não poderás mais dormir, e ela Vais trabalhar sem descanso e consumir sem recurso tudo o que ganhas.

Pela primeira vez não puderam desejar-se intimamente, e reciprocamente, um Infeliz ano novo, afinal passaram separados, embora por temporária secção de destinos, parece, Ele na serra e Ela no mar, o dia de ano. Se Todos os santos saudaram a paz aparentemente selada no seio da família, diriam os pagãos que por força de maniqueísta simetria e perfeito equilíbrio entre o mal e o bem, Todos os demônios haveriam de igual e inversamente se lamentar pelo mesmo motivo. Mas o que ensina a vida afinal ou, melhor dizendo, O que o tempero do ódio acrescenta à massa da vida vivida em constante conflito, interrogam os assistentes amigos do casal, provavelmente levando suas próprias vidas entre altos e baixos, como todo casal, aliás, casal de dois, redundantemente par seja porque se anula cada um ímpar ou então porque se espere o advento do ímpar nos filhos ou no que quer que seja, incluindo-se aí experiências pouco convencionais, posto que sejam insondáveis pelas estatísticas o quanto que estão abaladas as convenções e perfurado o casco da embarcação que conduz os casais, sobretudo se tem as velas açodadas, como se disse, por aquele furacão do ódio.

O que descobriram Ele e Ela naquela felicíssima noite infeliz que passaram separados embora sem separar-se na acepção social de jurídicas implicações do termo, haveria de se perguntar, talvez, um leitor especialmente ocupado dessas minúsculas infelicidades humanas, mormente se um advogado sem carreira judiciária constituída e sem grandes clientes de contas abonadas, mas também perguntamos nós a quem nos importa de alguma forma o sentido misterioso da existência sob o manto das solidões e das procuras que simplesmente nos leva a compartilhar azares e destinos, substituindo a incerteza e o medo pela arriscada tentativa, senão de ser, ao menos de se sentir temporariamente menos infeliz. Deus nos livre de uma deliberada predisposição ao pessimismo, por certo, tanto que ainda nos interrogamos um pouco mais sobre o que descobririam ambos perscrutando um as menores reentrâncias de uma estrela do mar e o outro a grandeza do Criador que dispôs estrelas de se ver no céu apenas do alto da serra. Descobriram, por assim dizer, e tarde demais, a dialética do amor ultra-romântico.

Mais que as diferenças em estilo e preferência, de resto sedutoras entre a surpresa do outro e a mesmice do eu; mais até que a incompatibilidade de gênios tão comum entre os casais e tão insistentemente convocada a justificar irremediáveis separações; mais enfim que o ódio aparentemente gratuito e sem sentido, que não se sabe por que há vinte anos, se pouparmos o primeiro de rápidas descobertas e pouquíssimas promessas, habita o casal; mais que qualquer outra coisa, enfim, descobriram o amor, ou melhor, não qualquer amor mas um amor, em especial. Amavam a contradição que alimentava suas vidas individuais, a negação da negação que irremediavelmente articulava um ao outro sem remissão, condenados a isto, ou seja, a não ser senão aquela velha e irreparável unidade de contrários, a contradição que se tornava insustentável a vida comum fazia com que para cada um ela fosse uma exigência, ou melhor, fazia com que não fosse insustentável senão a própria perda daquela insustentabilidade. Afinal, era preciso reconhecer que o ódio os alimentara existencialmente.

Que fazer se o ódio acabasse, perguntaram-se na iminente imparidade daquela virada de ano. Restaria ainda algum sentido para suas vidas em circunstâncias onde não fosse mais possível preservar aquela intransponível distância entre as estrelas, do céu ao mar, perguntaram cada qual ao que tinha diante de si, Ela a estrela do mar, Ele a estrela do céu. A verdade afinal se apresentava nítida nos contornos e de transparência cristalina e falava de algo inextinguível que coubera aos dois sustentar, sob o signo de pessoal infelicidade, uma vida inteira de vinte anos, ou melhor, duas vidas que o futuro, aquilo que compreendiam como o resto de seus dias, que não os esperava desde sempre senão que eles próprios conduziram com seu ódio até ali, que o futuro enfim era o amor, e que o amor não se prestava a instrumento banal da felicidade. Foram tristes e infelizes até aqui unidos no ódio que cimentavam; seriam tristes e infelizes para sempre em nome do amor que era preciso preservar.

Ele e Ela viveram infelizes e tristes, enfim, separados e amantes desde o ano ímpar até que a morte chegasse.

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