FAÇA SEU JOGO, 1972 (À moda da história do cerco de Lisboa)
Meu Deus, tende piedade dos homens
que vivem de imaginar
(Saramago)
O tempo não era por aqueles dias um rio ou uma serpente que inevitavelmente flui e cujos rastros dependem da natureza da superfície percorrida porque simplesmente não faria sentido não escorregar por abaixo nem prosseguir sempre adiante à procura do que ou de quem no futuro, no balanço incontornável das horas. Era mais um lugar cheio de gente o tempo, uma arca-de-noé com todas as espécies de bichos grandes ou pequenos, simples ou loucos, para não dizer que éramos uma mistura variada de qualidades simples e loucas, uma polis e seu demos o tempo e na cidade do meu tempo a autoridade ia sendo investida nos amigos e os serviços públicos seguiam precários em atenção e demanda. Lô Borges então tinha cara de menino, éramos todos muito meninos e meninas, e acho mesmo que ele se parecia comigo, fazia o que eu queria e acreditava que pudesse fazer dentro do tempo que dispunha virtudes mais ou menos por igual, algo factível e desprovido daqueles inúteis adereços do estrelismo útil apenas para demarcar territórios, o do artista dessa linha em diante, o meu e do público em geral, sujeitos no plural mas não porque diverso e sim de massa, até logo ali. A música talvez não a víssemos ainda ou resistíssemos a ver como uma grande indústria, o artista esse semideus que transforma nossa fome e sede em puro consumo de comida e coca-cola. Eu calçaria, por certo, se é que não calcei nunca aquele velho tênis branco de cano alto e listas azuis e cadarços de barbante, fotografado para a capa do elepê. Ele estava bem ali, surrado e sujo, tomando a capa inteira somente para confirmar o elo de co-autoria da vida jogada na estrada que estávamos existencialmente a jogar. Eu sonhei outro mundo, meu amor, e a paz morava na nossa casa, mil pessoas como nós, sem palavras, por viver, cantava Lô Borges naquele remoto ano da graça de 1972 e eu ainda hoje canto, morrendo de vontade de jogar outra vez essa minha vida esgarçada e triste na estrada, como quem não quer fazer nada e reencontrar amigos e de quebra abrir o coração e coisa e tal. Mais ou menos por aquele tempo Jules Feifer dizia, com seu traço bacana e longilíneo de humor cáustico, que Liberdade é o direito de escolher qual prisão. A liberdade de ser hoje coisas que desejei muitíssimo e que, por isso mesmo, não mais saberia não sê-las, tornaram-se, por assim dizer, minha prisão. Escolhi ser isto que agora sou embora não estritamente como desejei e solitariamente planejei e fiz, em circunstâncias de absoluta liberdade de escolha, mas por herança do passado, circunstâncias essas reunidas sob as novas condições do presente, a bem da verdade histórica e sociológica, porque como o velho Marx já escrevera há mais de cento e cinqüenta anos A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos, oprime também o meu fazendo-me ser o que sou, enfim. Mas, pergunto eu a mim mesmo, O que escolhi e como e quando foi que principiei a escolha ou ainda quando a inevitabilidade de escolher começou a influir positivamente sim na fabricação existencial daquilo que hoje sou. Saramago, além de inspirar o fazer do texto e seu prazer construtivo que nesta narrativa pratico, sustenta que Esse é um ponto da genealogia que em geral não merece consideração, averiguar o que, não tendo nenhuma importância, deu vida, lugar e ocasião à importância que passou a ter o que dizemos ser importante. Pergunto, então, Onde estará pois a importância no que hoje sou daquilo que julgava fosse tornar-se importante outrora, ou O que espera por tornar-se importante no que sou e faço hoje. Quase posso dizer que mais até do que sou, indiciário e presente, apenas sou o que fui e serei.
que vivem de imaginar
(Saramago)
O tempo não era por aqueles dias um rio ou uma serpente que inevitavelmente flui e cujos rastros dependem da natureza da superfície percorrida porque simplesmente não faria sentido não escorregar por abaixo nem prosseguir sempre adiante à procura do que ou de quem no futuro, no balanço incontornável das horas. Era mais um lugar cheio de gente o tempo, uma arca-de-noé com todas as espécies de bichos grandes ou pequenos, simples ou loucos, para não dizer que éramos uma mistura variada de qualidades simples e loucas, uma polis e seu demos o tempo e na cidade do meu tempo a autoridade ia sendo investida nos amigos e os serviços públicos seguiam precários em atenção e demanda. Lô Borges então tinha cara de menino, éramos todos muito meninos e meninas, e acho mesmo que ele se parecia comigo, fazia o que eu queria e acreditava que pudesse fazer dentro do tempo que dispunha virtudes mais ou menos por igual, algo factível e desprovido daqueles inúteis adereços do estrelismo útil apenas para demarcar territórios, o do artista dessa linha em diante, o meu e do público em geral, sujeitos no plural mas não porque diverso e sim de massa, até logo ali. A música talvez não a víssemos ainda ou resistíssemos a ver como uma grande indústria, o artista esse semideus que transforma nossa fome e sede em puro consumo de comida e coca-cola. Eu calçaria, por certo, se é que não calcei nunca aquele velho tênis branco de cano alto e listas azuis e cadarços de barbante, fotografado para a capa do elepê. Ele estava bem ali, surrado e sujo, tomando a capa inteira somente para confirmar o elo de co-autoria da vida jogada na estrada que estávamos existencialmente a jogar. Eu sonhei outro mundo, meu amor, e a paz morava na nossa casa, mil pessoas como nós, sem palavras, por viver, cantava Lô Borges naquele remoto ano da graça de 1972 e eu ainda hoje canto, morrendo de vontade de jogar outra vez essa minha vida esgarçada e triste na estrada, como quem não quer fazer nada e reencontrar amigos e de quebra abrir o coração e coisa e tal. Mais ou menos por aquele tempo Jules Feifer dizia, com seu traço bacana e longilíneo de humor cáustico, que Liberdade é o direito de escolher qual prisão. A liberdade de ser hoje coisas que desejei muitíssimo e que, por isso mesmo, não mais saberia não sê-las, tornaram-se, por assim dizer, minha prisão. Escolhi ser isto que agora sou embora não estritamente como desejei e solitariamente planejei e fiz, em circunstâncias de absoluta liberdade de escolha, mas por herança do passado, circunstâncias essas reunidas sob as novas condições do presente, a bem da verdade histórica e sociológica, porque como o velho Marx já escrevera há mais de cento e cinqüenta anos A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos, oprime também o meu fazendo-me ser o que sou, enfim. Mas, pergunto eu a mim mesmo, O que escolhi e como e quando foi que principiei a escolha ou ainda quando a inevitabilidade de escolher começou a influir positivamente sim na fabricação existencial daquilo que hoje sou. Saramago, além de inspirar o fazer do texto e seu prazer construtivo que nesta narrativa pratico, sustenta que Esse é um ponto da genealogia que em geral não merece consideração, averiguar o que, não tendo nenhuma importância, deu vida, lugar e ocasião à importância que passou a ter o que dizemos ser importante. Pergunto, então, Onde estará pois a importância no que hoje sou daquilo que julgava fosse tornar-se importante outrora, ou O que espera por tornar-se importante no que sou e faço hoje. Quase posso dizer que mais até do que sou, indiciário e presente, apenas sou o que fui e serei.
1 Comments:
outro dia achei aqui numa fita VHS gravado um programa de TV com o Lô Borges. A gravação é recente, mas pensei: "como ele tem a cara do Dadinho". Aliás, quando ouço "os mineiros" parece que vejo os anos 70, e ainda hoje, ir à Minas parece atravessar o portal para os anos 70, que nem cheguei a viver, mas que consigo sentir através desse portal, dessas músicas, dessas histórias e vivências de outras pessoas. Os anos 70 pra mim têm a imagem daquele álbum de fotografias com a capa preta com uma aquarela no centro, recheado de fotos coloridas-desbotadas, de vermelhos róseos e um restante russo, de pessoas com traços inocentes e verdadeiros, sem tantos cosméticos e aparelhos de ortodontia... pessoas que ouviam músicas e liam cartas, e isso era o bastante pra se emocionar. Viver entre tudo isso e a artificialidade generalizada, a liberdade perversa que dá a todos o direito a tudo (mesmo que seja mentira), os olhos (e não a mão) invisíveis que estão sempre a nos vigiar, medir e determinar nossos passos, é, de fato vivier num abismo.
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